segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Eduardo Galeano contra o futebol reprimido e repressivo...











Comparecer ao Uruguai é a oportunidade de reler um dos grandes escritores do país, Eduardo Galeano, que em 2015 rendeu 25 pontos no Bolão Pé-na-Cova... Mais conhecido por seu livro “As Veias Abertas da América Latina”, Galeano tinha o futebol  como um dos principais temas de seus textos, vide o livro “Futebol Ao Sol e à Sombra”... Após sair de cena, uma coletânea com diversos artigos sobre futebol, incluindo crônicas, ensaios e a história de uma entrevista com o Edson (OG) que fez em 1963, foi publicada com o título “Fechado Por Motivo de Futebol”... Em um dos textos, “No futebol, como na política, o medo não compensa”, Galeano comenta a campanha da seleção do Uruguai na Copa do Mundo de 1986, no Uruguai, e traça um paralelo com a situação política de seu país... Que acabava de sair de uma ditadura militar – que durou de 1973 a 1985, período em que Galeano esteve exilado na Argentina e na Espanha... A volta da democracia não significou o fim de alguns problemas que afligiam o país – e isso se refletiu na seleção uruguaia... A Celeste foi eliminada pela Argentina nas oitavas de final – depois de ser goleada por 6 a 1 pela Dinamarca na primeira fase – e a falta de ousadia ofensiva  da equipe nos gramados mexicanos é relacionada à repressão do governo ditatorial... Faz sentido, pois em 1986 a Associação Uruguaia de Futebol, a AUF, era comandada por militares, cuja influência seria apontada como determinante para a presença de Omar Borrás como treinador... Eis o texto de Galeano...

“Nosso país mostrou, na Copa do México (86), o futebol mais conservador de toda a sua história...  Este Uruguai que destina a gastos da repressão quarenta por centro do orçamento nacional mostrou um futebol reprimido e repressivo... Esse futebol conservador, pura defesa, nada de ataque, se propunha a arrebentar o jogo e não se envergonhava de ser incapaz de criar jogo... A seleção de Borrás não jogou para desfrutar, para sentir o prazer do jogo, e transmitir esse prazer para a torcida, mas tampouco jogou para ganhar:  o inimigo do risco tanto como o da alegria jogou para não perder... O resultado, paradoxal, irônico castigo, está à vista:  levamos a pior goleada da nossa história nas Copas... O medo do papelão acabou no mais espetacular dos papelões...

Oferecemos o futebol mais feio do Campeonato Mundial... Também por isso, e não apenas pela injusta campanha da imprensa, tivemos o público mexicano contra nós, e demos ao mundo inteiro uma impressão tão pobre... Os jogadores jogaram sem vontade, sem acreditar no que faziam: confundiam a paixão com as patadas, e foram raras as vezes que passaram do meio-campo... Nossos atacantes viam a goleira inimiga de binóculos...

O futebol é a metáfora de todo o resto... Este é o futebol do Uruguai oficial, programado para a impotência, sem imaginação nem coragem, que confunde justiça com vingança e que considera ameaça terrorista qualquer projeto de transformação que de verdade transmita alento de vida... O Uruguai oficial, o Uruguai quieto, que segundo as cifras oficiais expulsa 54 rapazes por dia, porque é incapaz de oferecer trabalho a eles e também porque, aqui, ser jovem é um delito:  o penoso espetáculo que demos no Mundial do México reflete em implacável espelho a realidade desse sistema envelhecido, estéril, especializado há anos em asfixiar qualquer manifestação de energia criadora...

Nos anos de ditadura, anos de sangrenta castração da fecundidade nacional, o Uruguai teve ao centro um quartel...  Ao redor, um montão de bancos com plena liberdade de especular, e de cujos lucros não vimos um vintém, mas cujos prejuízos estamos todos pagando...  Além disso, os latifúndios estéreis e as praias que Deus nos deu...  Ou seja: o Uruguai era uma caixa-forte rodeada por umas poucas vacas e com vista para o mar... A população, presa em cárceres visíveis ou invisíveis , condenada a viver mal na busca do dia a dia, da aposentadoria ou do lixo, emigrava quando podia...

Agora, na democracia, de verdade mudaram estas trincheiras que nos negam???... E se não mudaram de verdade, será que estamos condenados a elas???... Desde quando a audácia é pecado nesta terra de livres???...

O futebol ou antifutebol que fizemos no México, dirigidos por um coronel e por um professor de cassetete, não é o futebol uruguaio... É o Uruguai oficial, o Uruguai do medo, que não tem nada a dizer... Isso não significa que o nosso país seja mudo”...


















No livro “Celeste Mundial – História Oficial da Seleção Uruguaia nas Copas do Mundo”, Gerardo Bassorelli afirma, sobre o técnico Omar Borrás... “Não são poucos os que atribuem sua designação em 1982 como técnico da seleção a certa influência dos militares que governavam o país...  O presidente da Associação Uruguaia de Futebol (AUF) era o coronel reformado Matías Vázquez, um homem de uma honestidade reconhecida de forma unanime, e logo, estando Borrás confirmado como técnico definitivo, quem presidia a AUF era o coronel reformado Hector Juanicó (1983-1986)”... Borrás trabalhava na gerência esportiva da AUF quando surgiu o convite para disputar um torneio na Índia, em fevereiro de 1982 – no ano anterior, o Uruguai não havia conseguido classificar-se para a Copa do Mundo da Espanha... Já havia sido auxiliar técnico de Ondino Viera no Mundial de 1996, e dirigido a Celeste em dois amistosos disputados no Centenário em 1977... Dos 18 jogadores convocados para o torneio, apenas três jogaram o Mundialito de 1980 e somente oito iriam ao Mundial do México... O técnico iniciou um processo de renovação impulsionado pela conquista da Copa América de 1983, a primeira depois de 16 anos... Nesse torneio, Enzo Francescoli passou a vestir a camisa 10 a partir das semifinais... Nos amistosos realizados em 1984 e 1985, estreou na seleção uma jovem promessa chamada Rubén Sosa, embora a transferência para o futebol espanhol o tenha deixado de fora da Copa do México... Em compensação, o experiente Dario Pereyra, do Bambi, começou a ser chamado em 1985... Nas estreia das Eliminatórias, contra o Equador, no Centenário, o técnico afirmou que a vitória viria pelo alto – os dois gols do triunfo por 2 a 1 foram  com a bola no chão... Um deles marcado por Venancio Ramos, colocado no lugar de Wilmar Cabrera a 15 minutos do final da partida, após ter seu nome pedido por mais de 50.000 torcedores, logo em seu primeiro toque na bola... Depois de uma derrota para o Chile em Santiago e nova vitória sobre o Equador, em Quito, os uruguaios decidiram a vaga direta para a Copa em Montevidéu, com os chilenos, que tinham a vantagem do empate... A classificação veio com uma vitória por 2 a 1, mais uma vez graças a Ramos, que decidiu bater o pênalti destinado a Amaro Nadal... Sem contar que usou um limão – entre os tantos atirados pela torcida na direção dos chilenos - para desviar uma falta cobrada pelo chileno Aravena e assim dar uma forcinha para o goleiro Rodolfo Rodriguez (OG)...  Depois de conseguir a classificação para a Copa, a primeira que o Uruguai disputaria desde 1974, Borrás continuou a fazer experiências nos amistosos de preparação... Assim estreou na seleção o goleiro Fernando Alvez e retornou à seleção o experiente Rubén Paz, do time campeão do Mundialito e que deixou de ser convocado quando for jogar no exterior...  A despedida do público uruguaio aconteceu em dois jogos contra os principais times do país, em 27 de abril de 1986... Contra o Nacional, jogaram os reservas, que venceram por 2 a 0... Nessa partida, atuou o zagueiro Hugo De Leon (OG), que a despeito de brilhar no futebol brasileiro, ficou de fora da convocação para a Copa, aumentando o “prestígio” do treinador... Os titulares enfrentaram o Peñarol, cuja torcida, que compareceu em peso na Tribuna Amsterdam, trabalhou forte prestigiando Rodolfo Rodriguez (OG), famoso no Brasil por sua citação em um episódio do “Chaves”,  que havia jogado no rival Nacional... O Peñarol saiu na frente, com um gol de Diego Aguirre (o mesmo que, como técnico, teve uma breve passagem no comando do Bambi neste ano...) e a Celeste empatou com Da Silva... A partida terminou com o placar de 1 a 1 e pouco antes do gol de empate, Rodolfo Rodriguez (OG) se chocou com Batista e sofreu uma lesão no abdome, da qual se recuperaria a tempo de estar no México, embora não tenha atuado em nenhuma partida... Justamente ele, que era o capitão da equipe e recordista de partidas com a Celeste – 78 atuações – marca superada apenas por Diego Forlan em 2011...
















O sorteio das chaves do Mundial, em dezembro de 1985, definiu que os adversários na primeira fase da Copa seriam Alemanha, Dinamarca e Escócia... Borrás denominou a chave de “grupo da morte”... Bassorelli afirma que o treinador chamou a chave de “grupo da morte”, popularizando uma denominação já utilizada pelos mexicanos em 1970 – para definir o grupo do Brasil na primeira fase – e dada pelos italianos em 1982 a chave em que caiu a seleção do país na segunda fase, com Brasil e Argentina... Depois de uma série de amistosos jogados em abril de 1986, a Celeste passou por um período de aclimatação de 18 dias na Colômbia – onde tiveram a companhia dos dinamarqueses, adversários na fase inicial – e a partir de 20 de maio, concentrou-se em Tá Louca, Está Onde Mexe, dividindo o hotel com a seleção da Bulgária... O autor observa que 14 dos 22 jogadores haviam sido campeões sul-americanos juvenis, integrando as equipes campeãs em 1975, 1977, 1979 e 1981, uma época de títulos escassos entre os profissionais, tanto no caso da seleção quanto dos clubes na Libertadores...  “Se poderia dizer que se tratava de um plantel ganhador”, afirma... De todo o grupo, 14 jogadores atuavam fora do país... Também o futebol refletia a onda migratória...  Na estreia contra a Alemanha, em Queretaro, logo aos 4 minutos, Alzamendi aproveitou um passe errado de Matthaus e chutou para o gol de Schumacher, abrindo o placar, apesar da bola ter batido na trave, entrado no gol e saído em seguida... Troca de camisas de Batista e Bossio no segundo tempo à parte, o Uruguai segurou o resultado até os 39 minutos da etapa final, quando Aloffs empatou para os alemães... O empate em 1 a 1 parecia promissor, porém, contra a Dinamarca, em Nezahualcoyótl, os rivais abriram o placar com 11 minutos, vide gol de Larssen... Oito minutos depois Bossio, foi expulso... Lerbi ampliou para os dinamarqueses aos 41 e aos 45 Francescoli descontou, convertendo pênalti... O gol foi visto como o inicio de uma reação, “porém não contávamos com a astúcia daqueles ‘chapolins’ de uniforme metade colorado e metade branca”, conta Bassorelli... Laudrup fez 3 a 1 aos 7 minutos do segundo tempo e no que os uruguaios foram ao ataque, deram o flanco para mais três gols da Dinamarca – que venceu por 3 a 1... Durante o intervalo, Borrás orientou os jogadores a segurarem o resultado, pois temia os contra-ataques do adversário e uma goleada poderia colocar a equipe no caminho da Argentina nas oitavas-de-final... Depois da preleção, um jogador teria falado ao grupo para ignorar a orientação do treinador e atuar ofensivamente... Borrás não chegou a revelar o jogador desobediente, embora Francescoli tenha admitido, anos depois, que o grande erro da equipe foi, com dez em campo, dar espaço aos contra-ataques de um time que tinha nele o seu ponto forte...  O Uruguai enfrentaria a Escócia - dirigida por ninguém menos que Alex Ferguson - para tentar a classificação como um dos melhores terceiros colocados... Na primeira descida dos escoceses ao ataque, Gordon Strachan sofreu uma entrada dura de Batista, que seria expulso com 56 segundos de jogo – um recorde em Copas do Mundo... A expulsão foi tão rápida que o roupeiro da seleção, que estava no vestiário, teve que ir até a beira do campo para confirmar a notícia dada por Batista... Que se queixa do árbitro francês Joel Quiniou, o qual teria se deixado levar pela queda do escocês... Depois da expulsão, Borrás foi obrigado a mexer na defesa, enquanto no ataque apenas um ponta comparecia... No final, o empate sem gols garantiu a classificação para as oitavas, quando Diogo seria desfalque, por ter recebido o segundo cartão amarelo... Então é por isso que após o jogo Borrás declarou... “Sobrevivemos ao ‘grupo da morte’... Isso foi o que aconteceu hoje, havia um assassino em campo: o árbitro”... A frase levou a FIFA a multar a AUF em 25 mil francos suíços, além de suspender o técnico por uma partida... A equipe uruguaia também era muito “prestigiada” pela torcida local, devido a briga acontecida em um amistoso contra o México, em abril – os jogadores uruguaios eram chamados de “selvagens” pelos jornalistas mexicanos, o que alimentou a hostilidade mencionada por Galeano... O adversário nas oitavas, em Puebla,  seria a Argentina  – que para o autor, tirando Maradona, não era melhor que o Uruguai, entretanto era bem menos caótica... O técnico argentino, Carlos Billardo, preocupado com o ponta Wilmar Cabrera, colocou Ruggeri na marcação, pois acreditou que Cucciufo faria o Uruguai ganhar de goleada... Aos 42 minutos, o argentino Burruchaga tentou o passe para Valdano, cortado por Dario Pereira, porém Acevedo mandou a bola para o meio da área e Pasculli abriu o placar... Borrás, que orientava a equipe via rádio, substituiu Cabrera por Da Silva no intervalo, e após Acevedo tomar cartão amarelo, foi sacado para dar lugar a Ruben Paz, jogador que preocupava Billardo e quase empata o jogo num chute cruzado aos 27 minutos do segundo tempo... A Argentina quase aumentou com Maradona, em jogada com Valdano, a bola entrou no gol porém foi marcada falta do camisa 10 argentino... O Uruguai, por sua vez, teve chance de empatar com Ramos, bola defendida pelo goleiro Pumpido... No último minuto, antes do apito final, Bossio parou mais um dos avanços de Maradona com um chutão... 1 a 0 Argentina, Celeste fora do Mundial... Na volta ao Uruguai, Dario Pereira queixou do trabalho fraco na criação de jogadas de ataque, mesmo problema apontado por Galeano em sua crônica... O autor do livro resume as principais críticas feitas a Borrás durante a Copa... Não ter convocado De Leon (OG)... Deixar Dario Pereira na reserva de Eduardo Acevedo... Aproveitar pouco Rubén Paz, que jogou apenas os 30 minutos finais contra a Argentina... Preferir Montelongo a Diogo... Sem contar que Francescoli pediu para jogar pela ponta, como fazia no River Plate da Argentina, e o técnico sempre o escalou como volante adiantado ou ponta recuado...  Em resumo, trata-se da criatividade tolhida citada por Galeano...













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